sexta-feira, 13 de novembro de 2009

"Viver é fácil. A dor é apenas o intervalo para fumar". (Tarso de Castro)












Até hoje eram apenas duas páginas recortadas e amareladas do Pasquim, de 1970 (não sei o número... só sei que é de 70 porque ele dá uma dica no texto, como verão...), que eu guardei. Finalmente (depois de mil tentativas fracassadas), transcrevi, acento por acento, palavra por palavra - idem pros negritos... esse texto que pirou minha cabeça aos 16 aninhos. Pirou no sentido de que o meu norte foi parar no sul, e meu sul, no norte, ou seja: fiquei de ponta cabeça e todas as besteiras de adolescente apaixonado que eu escrevia pras menininhas do Rio Branco foram descarga abaixo. Aliás, foram dois grandes textos (prá mim), na sequência, mas um deles, babáu...
Acabei de ganhar uma coleção de Pasquim, e alguns deles são de antes do nº 80 (saída dele do jornal). Quem sabe, né...
Há uma bio simplista e reduzidíssima na Wikipedia, pra quem não conhece a figura (http://pt.wikipedia.org/wiki/Tarso_de_Castro). No entanto, toca em pontos definitivos de sua carreira breve: dentre outros, foi o criador do caderno Folhetim da Folha de São Paulo (long gone, mas que seria o pai - ou a mãe - dessa revista de Domingo atual da Folha) e um dos fundadores do polêmico jornal O Pasquim, do qual foi editor por 80 edições, juntamente com Jaguar, Millôr, Sérgio Cabral, Luiz Carlos Maciel, Paulo Francis e outros.
A última informação da Wikipedia é dura, mas real e é parte de sua biografia, Tarso de Castro - 75 kg de Músculos e Fúria, lançada em 2005 pela editora Planeta: "Tarso de Castro era alcoólatra e não admitia se tratar, e morreu de cirrose hepática aos 49 anos de idade". Dessa, eu escapei.
Sete Horas da Manhã é trailler de seu incrível talento de escritor, moldando o que eu chamo de texto repentista, embolada literária, sei lá; provávelmente foi escrito após longa bebalada noturna, só para cumprir a palavra e/ou entregar matéria prometida, em estilo único, preciso e impiedoso. Expect no mercy from his lines & liners (o título desse post, por ex.).

Te encontro lá, Tarso, no maior tédio com o infinito, que provavelmente com sua chegada tenha se desentediado, Teddy boy.
Mas que seu texto é uma maravilhosa trama de letras, palavras e idéias, ah! isso é.


SETE HORAS DA MANHÃ

(O mascote Sig, diz no balãozinho de Hq: "Não sei se vocês já notaram que o Tarso adora fazer hora")

São sete horas da manhã e não tenho nada a declarar. O Sérgio me pediu um artigo, e eu não pude dizer que não tinha nada a declarar porque o Sérgio não entenderia. São sete da manhã e eu ainda me chamo Tarso de Castro. Eu acho que só mesmo às sete da manhã a gente descobre umas coisas. Por exemplo, eu acabo de descobrir que sempre vou me chamar Tarso de Castro. Nunca houve nada como sete da manhã. É mesmo, juro: eu, cheguei em casa pensando em escrever uma coisa com o título de Sete da Manhã . O drama é que no relógio eram sete da manhã. Eu estava com o Ronaldo Bôscoli. Eu gosto do Ronaldo e vivo num país em que as pessoas me pedem para falar mal do Ronaldo. Às sete da manhã eu sei que não posso falar mal do Ronaldo. Mesmo que eu não gostasse, tem uma coisa: eu não tenho nada a falar de ninguém. Eu dizia antes, há pouco, ao Jorge Bem, que o Pelé é um safado. Eu nem falava mal dêle. Só dizia, o Pelé é um safado. Porque o Pelé é safado. Se alguém duvidar, que pergunte a êle. Êle, o Pelé, sabe, todas as sete da manhã, que é um safado. Eu tenho muita pena das pessoas que não estão acordadas ou sorrindo às sete da manhã. O Antônio Calmon me dizia, “Você é louco. Tem que ser internado.” O Calmon me disse isso às sete da manhã, e, às sete da manhã, nós descobríamos que infelizmente não havia lugar pra gente se internar. Só quem passa pelas sete da manhã sabe o jeito das sete da manhã. É uma terra e um tempo. Nessa sete da manhã de agora eu estou exatamente em frente à Lagoa, essa Lagoa do Rio, onde os peixes apodrecem só para sair na primeira página do Jornal do Brasil. Os peixes adoram sair na primeira página. Só às sete da manhã é que a gente consegue umas coisas de Deus, como, por exemplo, ficar naquela: “Não há de ser nada”.
Às sete da manhã eu acredito em Deus, só para pedir: “Ô Deus, seguinte: não deixa o Vinícius morrer antes de mim”. Só quem passou pelas sete da manhã pode amar tanto o Vinícius de Moraes, foi exatamente às sete da manhã que Vinícius escreveu O haver.
Às sete da manhã você tem pena de Deus, dá a Deus o direito de aniquilar um cara lindo enfiando-lhe um câncer na garganta. Não vai haver nunca uma desgraça maior do que Deus: onipotente, onipresente, onitudo. E o pior: ele, Deus, prá quem as pessoas se ajoelham, nunca vai ter o gôzo da dor, nunca vai morrer. Nunca. Preste atenção: nunca.
Deus, pense bem, todas às sete da manhã, terá o tédio de milhões de anos. Ele tem o tédio eterno. Deus si (*) Eu colocaria Deus no colo. Às sete da manhã é que eu tenho mais saudade do Ivan Lessa. Como o Ivan me faz falta. O Ivan, se vocês não sabem, viu as pintas feias no bumbum do Antônio Maria. Às sete da manhã eu sei o quanto gosto do Ivan: se ele começasse a morrer na minha frente eu não deixaria. Mas iria com ele, se a gente combinasse. Nesta sete da manhã de agora o Glauber Rocha dorme. Às sete da manhã é que eu vejo que o Glauber é casado, com uma planta chamada Rosinha e tem uma ave, que é a sua filha, chamada Paloma. Só eu posso chamar o Glauber de gênio sem que ele fique ofendido. Glauber é um animal de excelente qualidade. Vocês podem dizer que é mentira, mas o Glauber chora as tão famosas e inacreditáveis “copiosas lágrimas”. Glauber tem todos os direitos e deu uma casa pra mãe dele. Às sete da manhã eu sou feliz porque, prá começo de conversa, tenho dois pra nunca precisar mentir: Glauber e Ivan. Às sete da manhã eu sei que sou Tarso de Castro, tenho 29 anos, dispenso e amo o sucesso, sei que mito no Brasil é feito de carne e osso e – talvez infelizmente – não preciso ser herói. Nesta exata sete da manhã ninguém está na cama, “fazendo amor” (às sete da manhã eu não esqueci que vivo num lugar em que tenho que dizer “fazendo amor”) a não ser Luís Carlos Maciel e sua mulher Celinha, uma vez que os dois estiveram muito tempo fingindo um som. Às sete da manhã, pra que vocês tenham uma idéia, a Greta Garbo está com uns sessenta anos, eu sei que nunca dormirei com a Marilyn porque ela morreu e apodreceu, o Carlos Gardel infelizmente não vai voltar, a Danusa foi coroada no Canecão, a Jackie não é mais Kennedy, o brilhante da Regina Rosemburgo descansa em paz, Brigitte Bardot dorme com um lamentável equívoco, o Roberto Campos sonha com um empreguinho no governo, a Nara Leão – Cacá, o bom Cacá, dorme – vai a feira livre de Paris (leva junto os joelhos lindos), Bárbara dorme, Flávio Rangel chega em casa sem fazer barulho, Miguelzinho Farias dorme ao lado de Suzaninha, ou seja, tenho 29 anos, ou seja, tenho pai e mãe – isso aos 29 anos – ou seja, a bomba atômica é um luxo inútil.
Às sete da manhã eu gostaria de lembrar a todos os senhores que me minha independência me dá direito a dizer: “Olha, o Roberto Marinho não é tão mau”. Um dia, O Globo, numa nota, quase me liquidou; mas eu digo: Roberto não é tão mau. Eu sei disso porque são sete da manhã. O Roberto é vivo, o burro é o irmão, o Rogério. Às sete da (nota: quebra de pág.) manhã, eu sei que o verme é o Rogério. E não interessa muito, ainda que fosse o Roberto, eu perdoaria, eu entenderia, ele ganhou o direito ao ódio, à safadeza, ao que quiser, naquele primeiro do ano em que morreu Robertinho – eu sei que ele seria nosso amigo – e, com ele, uma meta: só aquele menino poderia botar os Marinho do lado bom da história. É isto: o Roberto tem direito ao ódio – e eu posso dizer que nunca precisarei dele. Glauber filmou às sete da manhã e deu-lhe o nome de Terra em Transe. Picasso pintou sete da manhã e deu-lhe o nome de Guernica. Fernando Pessoa escreveu às sete da manhã e chamou-a Poema em linha reta.
Deus é possível às sete da manhã, justamente na hora em que os empregados acordam. Às sete da manhã me olho no espelho para dizer que preciso ser mais responsável.
É a hora em que as crianças enchem o saco dos pais.
Às sete da manhã eu desejo ardentemente que Nélson Rodrigues continue vivo, que saiba de toda sua sordidez, que não consiga ajoelhar. Às sete da manhã, termina a missa das viúvas do interior. É quando começa a missa dos alunos dos internatos. Às sete da manhã é que eu encontro com Leão Nuñes y Castro, meu maravilhoso e louco avô, que encontro com Maurício Oppenheimer, dono do único segredo que não traí.
Às sete horas da manhã, Nixon, a caminho do gabinete, pensa: - "Como sou canalha!”
Às sete horas Stálin tinha mais medo da morte, corria mais dos espíritos dos fuzilados. Foi ás sete horas, na Bahia, que Iemanjá me tomou um colar de conchas.
Foi às sete horas, dias depois, que Iemanjá me tomou meu patuá de Oxum.
Juscelino acorda às sete para nadar às oito (Saiba, presidente, que sua filha Márcia é uma coisa boa, muito boa). As sete horas Fitzgerald bebia e Zelda morria queimada.
Às sete horas se soube: Hemingway era um ator. Apenas um ator.
Às sete horas tenho saudade de Glauber, Ivan, Maciel – eu quero comprar uma super oito. Às sete, aos 20 e lá vai anos nasceu Erasmo. Às sete horas, há pouco, Chico Buarque deu a porrada. Às sete horas, em ponto: mercado da Bahia, Caetano, Sônia (você de olho violeta, pois é, faz seis ou sete anos, espero que você não tenha morrido), Elis Regina (eu morava no sexto, ali na Figueiredo Magalhães, você no quarto, muito pobre, muito gaúcha, porém bem cuidada; eu, Elis, tinha cuecas rasgadas), Gil, Jango, Peréio, Paulo Autran, Capinam, minha amada Leilinha Dinizinha que que que – sabe, né Leila?, meu padrinho Do Cavalcanti, Calazans – louco que acaba morrendo por mim, Miguel, Claúdio – chega. Fausto Wolff é menos grego às sete da manhã. Às sete da manhã tem lugar pra todo mundo. O Papa Paulo VI apodrece às sete da manhã – mas ás sete da manhã não há nada de mais nisso. Nesta sete da manhã, Paulo Francis tem uma estranha na cama ou na cabeça. Às sete da manhã, vejam, a praia é composta de areia e água (salgada). O Sul está no sul e o norte está no norte – porque nem mesmo às sete da manhã ninguém se preocupa em saber se o mundo está de cabeça para baixo, fato que implicaria no sul estar no norte e no norte estar no sul.
Ainda assim, ainda às sete da manhã, ainda quando morrem vietcongs e americanos, prêtos ou brancos, cavalos e borboletas, ainda assim, mesmo em caso de ejaculação prematura, é justamente às sete da manhã que o mundo se move regularmente. Sete horas se compõe de 60 sete horas, 24 sete horas perfazem uma sete horas, 365 sete horas compõe uma sete horas.
Às sete horas da manhã a gente pode morrer, mas convém lembrar uma possibilidade: a vida eterna. OU: um bilhão de anos de sete horas da manhã; um bilhão de anos de tédio; a total impossibilidade da morte, o nada definitivo.
Ou seja: ninguém mais vai poder lutar, beber, amar, se doer, ter hepatite, matar, ter medo, nada. Ninguém vai poder morrer. Nunca mais. Chamam de paraíso: todos irmãos (Hitler tá lá), todos se amando (Hitler amando seis milhões de judeus), todos felizes (torturador e torturado, irmanados), todos acima do bem e do mal, todos apenas espírito, sem corpo e, portanto - sem dor, sem sangue, sem drama, sem lambreta apimentada, sem vinho Nuit de Saint Jorge, sem sexo.
Jimi Hendrix está lá: sem guitarra e – como espírito não tem corpo, segundo mamãe, que manja essas coisas – sem voz. Ninguém vai escapar, todo mundo vai ver Deus, anunciar, orgulhoso:

- Senhores e senhoras, temos a honra de apresentar o maior tédio do infinito. Começará às sete da manhã.
Couvert: nunca dormir, nunca morrer.

TARSO DE CASTRO


PS – Como o Pasquim é um jornal altamente humorístico, sugiro a gargalhada final.

OS 1 – Quanto a minha morte, que é a última, vai ser um tremendo barato: lenta, muito lenta, num azul que eu acabo achando.






MEU NOME é Tarso de Castro e não tenho nada a declarar. Já sei que todo mundo faz cocô.